Rafael Braga: jovem, negro e favelado, é este o perfil das pessoas que estão hoje dentro do sistema prisional brasileiro. O Brasil é um dos países que mais encarcera no mundo. Campanha como a de Rafael coloca em debate a realidade do sistema prisional. Nesta entrevista, integrantes da campanha falam também do direito habitacional, algo ainda negado à população negra do país. Ou seja, o país que encarcera é o que também não garante moradia a esta mesma população. A campanha ‘Uma casa para Rafael’, segue firme e já está quase atingindo o seu valor máximo, o que nos mostra que lutas autônomas e populares por um grito de liberdade deste povo são extremamente necessárias diante de um sistema racista que controla, remove, militariza e mata. Leia entrevista completa abaixo e apoie esta luta pela liberdade de Rafael e de todos e todas as presas políticas.
1 – Uma casa para Rafael Braga, falem da importância desta campanha e da compra da casa para ele e a família:
Alguém compartilhou uma das publicações da página da Campanha pedindo doações para a compra da casa e logo abaixo um homem branco comentou que Rafael Braga não merecia uma casa mas uma cova. Este tipo de pensamento comprova o quanto a escravidão é uma instituição presente na sociedade brasileira. Apesar dessas pessoas, e contando com a solidariedade de muitas outras juntos vamos dar uma casa para o Rafael e sua família e com isso estamos afirmando que vidas negras e faveladas, sim, importam.
Habitação é um direito fundamental historicamente negado a grande parte da população brasileira. Rafael e a família hoje dividem um espaço diminuto e precário; eles fizeram do pequeno barraco seu lar, mas estão firmemente engajados no projeto de mudança para uma casa onde disponham de melhores condições de vida. Nós já batemos e, na verdade, ultrapassamos a meta crítica do financiamento coletivo; as doações já contabilizam mais de 75 mil reais e continuam crescendo. Essa vitória foi conquistada através de uma mobilização autônoma e independente, feita com cuidado e esforço com grupos e pessoas apoiadores daqui do Rio e de outros estados. Nós pedimos que todos se mantenham mobilizados para a compra da casa, pois todo dinheiro arrecado vai se converter na realização de um projeto que fará uma diferença real na vida dessa família já tão injustiçada.
Quer fazer sua doação para a compra da casa e apoio aos familiares de Rafael? Entre no link: https://benfeitoria.com/umacasapararafaelbraga
2 – Falem do histórico da campanha Rafael Braga, quando nasceu, as pautas e como vocês conseguiram avançar o debate em todo o país e mundo.
Após a notícia de condenação do Rafael no final de 2013, diversos coletivos, ativistas e militantes começaram a se mobilizar em torno da causa do Rafael Braga, impulsionados pela companheira Sarah Cordeiro, falecida em 2014. No início de 2014, ocorreram diversas reuniões e chamados para construir a luta pela liberdade do Rafael. Após algumas atividades iniciais como panfletagens e Culto Ecumênico na porta do presídio em Bangu, a luta se estabeleceu como uma Campanha fixa, horizontal e aberta em meados desse mesmo ano, quando foi organizado um Ato-Vigília nos dias 25 e 26 de agosto, dia da decisão sobre a apelação contra a prisão dele.
Em novembro de 2014 foi organizada uma Campanha Nacional pela Liberdade do Rafael Braga fruto de uma articulação da Campanha local junto com o DDH e o extinto Fórum de Enfrentamento ao Genocídio do Povo Negro. Durante cerca de dois meses, o caso do Rafael foi massificado nacionalmente, ocorrendo atividades em relação ao caso em mais de dez estados do Brasil. No Rio, a Campanha organizou um ciclo de debates em praças: em Olaria, Centro e Largo do Machado. Conseguimos difundir os absurdos das prisões de Rafael através de Campanhas nacionais e internacionais, com atividades em mais de dez estados do Brasil e países como Argentina, Uruguai, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Inglaterra. Hoje, a Campanha pela Liberdade de Rafael Braga tem comitês no Ceará, Rio Grande do Sul, São Paulo, Brasília, Goiás, Espírito Santo, na Alemanha e no Japão, além de apoiadores em diversos cantos do mundo.
Ao longo desses anos a luta pela liberdade do Rafael foi feita pautando temas como seletividade penal, racismo e genocídio do Povo Negro. Rafael Braga foi detido e condenado em 2013 mesmo sem nunca ter participado de uma manifestação. Ele foi detido por ser Negro e pobre. Nenhuma mobilização ocorreu quando da sua prisão e, mesmo após sua condenação, as mobilizações pelo Rafael nunca obtiveram tanta atenção como as lutas para libertação de outros presos das manifestações de 2013 e 2014. A nova prisão de Rafael em 2016 só reforçou um processo continuado de racismo institucional. Vivendo em uma área militarizada, Rafael foi abordado e acusado de tráfico. O kit flagrante forjado pelos PMs para incriminar o Rafael é comumente utilizado em favelas e periferias. A guerra aos Negros e pobres camuflada de guerra às drogas segue fazendo novas vítimas diariamente, exterminando o povo Negro e favelado e impulsionando o encarceramento em massa.
Desde o início a Campanha esteve próxima da família tentando ajudar no que fosse possível. Dona Adriana Braga, sua mãe, sempre esteve junto à Campanha, que se mobilizou para ajudar financeiramente tanto a família como o Rafael dentro da prisão, através da arrecadação de doações, alimentos e venda de materiais de propaganda como bottons e camisetas.
Atualmente, a Campanha se reúne todas as terças-feiras às 19 horas, na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro, nas escadarias da Câmara. Caso esteja chovendo, a reunião é transferida para a marquise do restaurante Amarelinho, ao lado da Câmara.
3 – O caso Rafael Braga representa o histórico da população carcerária do país: Ele é jovem, negro e favelado. Queria que vocês falassem sobre a atual situação do sistema prisional, sendo este um dos países que mais encarceram no mundo e como isto é um projeto de racismo institucional do país.
Todos sabemos que a polícia é uma instituição racista, ainda que muitos finjam esquecer. Mas as vezes estranham quando acusamos a justiça. Rafael sempre negou os crimes forjados contra ele. Só que, enquanto ele é desacreditado, além de dispor de fé pública a polícia tem sua palavra autorizada pela Súmula 70, dispositivo que permite ao juiz tomar como verdade qualquer coisa dita pelos policias. Isso só oficializa um comportamento recorrente na justiça brasileira. Se uma garrafa Pinho Sol basta para condenar alguém a cinco anos e quatro meses de prisão então contra determinadas pessoas vale tudo. A culpa está dada desde o início, o processo apenas comprova o que já se sabia – o crime é outro, é ter nascido negro e pobre.
Ainda que seja absurdo, o processo de 2013 não foi anulado. Pelo contrário, quando condenado em 2016, Rafael ainda respondia pelo processo anterior; logo foi tido como reincidente. O juiz atribuiu a ele uma psicologia voltada para o crime – mas seria mesmo estranho se a justiça assumisse que se trata tão somente de racismo. 9,3 gramas de cocaína e 0,6 de maconha: onze anos e três meses de prisão. Não há nenhuma proporção entre a pena e a quantidade ridícula de drogas plantadas pela polícia; a testemunha de defesa foi simplesmente desconsiderada. Mas é ainda pior, embora tenha sido encontrado sozinho Rafael foi condenado não só por tráfico mas também por associação para o tráfico. O magistrado que assina a sentença deduz os crimes do simples fato de Rafael ter sido preso numa favela: a sentença criminaliza todos os moradores daquela comunidade, o que não surpreende vindo de um juiz que expediu mandado de busca e apreensão coletiva para todas as casas de duas das maiores favelas da Maré. O que queremos destacar é que como Rafael são muitos, incontáveis. Acontece que todo esse esquema é muito bem armado. Nem a mobilização nem uma defesa tecnicamente eficiente até agora foi capaz de livrá-lo de duas condenações injustas. Prisão domiciliar ainda é prisão e o habeas corpus que garante o direito de tratar a tuberculose em regime domiciliar tem prazo de validade, dia 18 de fevereiro de 2018. Nós exigimos a liberdade de Rafael porque não nos cabe outra coisa senão exigir.
O tráfico tem sido o principal argumento utilizado para encarcerar negros e pobres. Os homens são a maioria nas prisões, mas nos últimos anos a quantidade de mulheres presas cresceu vertiginosamente. O encarceramento massivo de corpos negros é proposital. Rafael Braga é só mais um na quarta maior população prisional do mundo. O racismo se fez presente na vida dessas pessoas desde cedo; muito lhes foi negado: bens coletivos como: saúde, educação, lazer, habitação. Ao mesmo tempo, o Estado que efetivamente chega às favelas é um Estado militarizado e letal; é um Estado que se utiliza de estratégias de contenção e apagamento empreendidas com a justificativa rasteira da “guerra às drogas”. Não é só que quando o Estado não prende ele mata, mata prendendo. Rafael contraiu tuberculose em Bangu II, uma das milhares de prisões deste país onde a chance de você contrair tuberculose é quase quarenta vezes maior que se você estiver fora delas. E a tuberculose é só uma das doenças que proliferam em ambientes lotados e inabitáveis. Trancar pessoas em lugares onde as possibilidades de vida são as mais impossíveis é pôr elas lá para morrer.
A prisão de Rafael atingiu também sua família, já que ele ocupava um lugar fundamental no sustento da casa. Dona Adriana como muitas outras mulheres negras teve que aprender o caminho da prisão. Durante as visitas, essas mulheres têm sua intimidade invadida. A comida que sempre entrou em determinado dia não entra; a mãe passou a noite toda cozinhando mas tem que jogar fora. Isso é humilhação, é uma forma de dizer a presos e familiares o lugar que ocupam nesse mundo racista e desigual. São as famílias que alimentam os presos – elas são penalizadas também economicamente. Os familiares levam comida e materiais de limpeza e higiene, levam afeto, nutrem como podem e mantém vivos os seus, os mesmos que a sociedade quer eliminar.
4 – Como os movimentos sociais podem apoiar a campanha Rafael Braga e pautarem cada vez mais o sistema prisional e a luta cotidiana contra os encarceramentos e o racismo?
Primeiro é importante lembrar que não somos apenas nós que nos mobilizamos em torno da história do Rafael Braga. Nesses quatro anos, vários movimentos vêm construindo atividades e ajudando a família. Todos que lutam pela liberdade de Rafael constroem a Campanha e todo movimento social pode e deve pautar o caso do Rafael enquanto símbolo da seletividade dessa justiça racista. Lembrar o Rafael Braga não quer dizer que o seu caso é mais importante do que qualquer um dos outros milhares de Rafaeis Bragas existentes no sistema prisional brasileiro e é exatamente por isso que ele continuará sendo insistentemente lembrado. Sua história tem ajudado exumar um fantasma que muitos querem manter soterrado; tem contribuído para materializar a revolta contra a cumplicidade da polícia, da justiça e da prisão no massacre diário infringido ao povo Negro e favelado.
De uns anos pra cá, a questão do genocídio do povo Negro tem sido cada vez mais pautada dentro dos movimentos sociais; é um caminho sem volta. Se hoje admitir que há um genocídio em curso já faz parte do discurso de grande parte dos movimentos, precisamos mostrar os meios por através dos quais esse genocídio toma cabo. O encarceramento em massa é um dos tentáculos do genocídio do povo Negro, impulsionado em grande parte, mas não só, pela dita “guerra às drogas”. Esse debate ainda é muito incipiente dentro dos movimentos sociais e é difícil acharmos ferramentas para lidar com o problema, que muitas vezes fica limitado à atuação institucional junto ao Ministério Público, Defensoria, etc. Obviamente, é o Estado que cria problemas para as pessoas e cabe a ele repará-las. Mas sabemos que são poucos os resultados de uma luta institucional se não há uma mobilização popular pressionando por algum resultado.
Os temas do encarceramento em massa e da seletividade penal precisam criar raízes dentro dos movimentos sociais para que a revolta e solidariedade em torno dos casos reais tomem corpo. Apenas os movimentos que lidam com casos diretamente como a Campanha, movimentos de mães de vítimas do Estado, movimentos de família de pessoas encarceradas é que têm pautado mais essas questões; é uma luta de entrincheiramentos, e essas guerreiras e guerreiros têm lutado um bom combate nas condições mais difíceis. Nenhuma mobilização surge espontaneamente. É preciso colocar o debate dentro da sociedade, mostrar que o problema existe e construir articulações a partir do trabalho diário. Acreditamos ser função dos movimentos sociais identificar e colocar o problema junto à sociedade, que é um pouco o que a Campanha e movimentos sociais têm tentado fazer.
Libertem Rafael Braga e todos os presos políticos deste Estado racista e burguês!
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Por Gizele Martins, jornalista e moradora da Maré.
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