Glaucia Marinho, de 32 anos, é jornalista da organização Justiça Global. Fez graduação em Comunicação Social na Puc Rio e mestrado em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas da UERJ-FEBF. Glaucia é reconhecida em todo o movimento social por sua atuação na luta contra o racismo, é militante do movimento negro e, também, pelo direito à moradia numa das cidades mais caras do mundo, o Rio de Janeiro. Além de todas estas lutas, Glaucia há anos é educadora, já atuou no Pré Vestibular Comunitário Machado de Assis, no Morro da Providência e em projetos de alfabetização para jovens e adultos na ocupação Chiquinha Gonzaga, no Centro do Rio. Nesta conversa para o Sintifrj, ela fala da sua percepção sobre a educação formal brasileira ainda com métodos eurocêntricos em sala de aula, dos retrocessos nos direitos trabalhistas e da importância de se lembrar em sala e em toda a sociedade o ‘Dia 20 de novembro’, dia de Zumbi dos Palmares.
Leia entrevista abaixo:
1 – Como educadora, qual a sua visão sobre a didática e a metodologia utilizada em sala de aula? A população negra é representada nessa formação básica?
Muito precisa ser pensado sobre a educação formal no Brasil, isso numa perspectiva de gênero, anti racista, é preciso que outros grupos sejam incluídos nessa educação. Uma é pensar o método, a gente tem a reprodução de um modelo de um professor em sala de aula, um modelo que não cabe mais. Existem projetos horizontais e outras formas de produção de conhecimento.
A gente fala muito da organização formal em sala de aula, sobre o método, mas muitas das escolas não tem carteira, não tem professor em sala, não tem uma estrutura básica. O que dificulta a construção de espaços de produção libertária.
Para além da falta de estrutura, nas cidades grandes e em especial no Rio de Janeiro, o que se vivencia é um terrorismo de Estado. Crianças e adolescentes tiveram suas vidas tiradas dentro de escolas que estão dentro de favelas do Rio de Janeiro. São locais de moradia de uma população que em sua maioria é negra. Para além do pouco acesso a estrutura, essa população vive em locais em que o Estado oprime e controla.
Junto a isso, ainda tem o conteúdo em sala de aula, a falta de implementação da lei 10. 639 é um dificultador. As universidades têm às vezes uma eletiva sobre História da África, outras licenciaturas sequer tem uma matéria sobre História da África. O nosso povo é furtado desse conhecimento, por isso, não tem o que ensinar em sala de aula sobre a sua própria história. Com tudo isto, se tem o aumento do conservadorismo e, por isso, as pessoas ainda vêem com estranhamento a religião e a cultura afro. Tudo foi furtado propositalmente. A mesma coisa é o livro didático, assim como os comerciais e novelas que ainda reproduzem racismo. Recentemente, foi mostrado um comercial de um papel higiênico preto e que utiliza a frase histórica do movimento negro. Ou seja, é uma luta diária, é uma luta constante contra o racismo em todos os espaços.
2 – Sobre as universidades cariocas, qual sua percepção sobre esse modelo de ensino e o por que temos uma população negra ainda ignorada e fora deste espaço espaço?
Na educação básica se sofre com o problema estrutural: a falta do conhecimento nos livros didáticos, os métodos, a falta de professor em sala de aula e a formação dos professores. Agora, se tratando da universidade, um caso emblemático de racismo educacional é o que vive a UERJ. A primeira universidade a ter cotas raciais, é a que está em falência.
Se temos hoje no Brasil uma universidade que de fato discute ação afirmativa e tem um resultado concreto, é a UERJ. Ela desde 2003 é de todas as cores, além de ter prédios em locais periféricos, diferentes de muitas outras instituições de ensino. Desde 2003, você caminha pela UERJ e vê todas as cores construindo um saber. Mas, por causa disso, essa universidade é atacada pelo governo. A falta de verbas da UERJ não é a toa, estudaram e estudam nesta universidade negros e indígenas. Daí, se tem um plano do governo em atacar e acabar com esse espaço.
O Rio de Janeiro tem uma população de maioria negra, mas se entramos em qualquer universidade é perceptível uma maioria branca, como se estivéssemos em uma universidade europeia. Para além do grave caso de racismo que a UERJ passa, nós negros temos também dificuldades de acesso para lecionar nas universidades. É preciso ações afirmativas nos concursos, além de bolsas. Só vamos ter uma mudança progressiva se tivermos acesso a esses espaços também.
3 – Estamos vivendo um momento em que o país sofre vários retrocessos, quem mais vai sofrer com essas retiradas de direitos é a população negra e pobre, o que fazer diante desta atual situação?
Diante do marco histórico dos 130 anos da abolição que será lembrado no próximo ano, o governo Michel Temer volta a discutir as leis do trabalho escravo no Brasil. Nessa mudança legislativa, quem vai ser mais atingido é de novo a população negra, imigrantes haitianos, congoleses, angolanos. Os que vão estar em situação similar à escravidão são de novo os não brancos. Foram anos de luta por direitos trabalhistas e quando se começa a ter acesso a este tipo de processo em defesa do trabalhador, os direitos são retirados.
Estamos falando de uma população que sempre trabalhou, muitos trabalham desde a infância. Os motivos desta população sempre trabalhar são muitos: o racismo, a retirada de direitos, o empobrecimento.
O que temos que fazer diante de todos esses retrocessos na educação básica, nas universidades, nos direitos trabalhistas, é se mobilizar. Só a mobilização, as greves, as organizações de base podem travar essas retiradas de direitos.
Os governos estão ligados aos grandes empresários. Temos um congresso em que parte dele é formado por filhos dos grandes latifundiários, das oligarquias. São políticos envolvidos em trabalhos escravos. Eles estão provocando essa mudança na constituição para garantir que a oligarquia brasileira tenha livre acesso ao que eles já fazem: escravidão, matança. Eles são latifundiários, moram nos centros urbanos, é uma população branca que está lá.
4 – Você falou sobre as formas de organização hoje, é importante lembrar das formas de organizações passadas, conte sobre a fundação de um dos primeiros sindicatos do Brasil:
A população negra sempre se organizou, mas toda a sua história de resistência foi usurpada. Os livros didáticos afirmam que os sindicatos surgiram no país com a chegada dos italianos. É apresentado pelos livros como se fosse o europeu chegando aqui e organizando tudo. O que torna invisível a organização que já existia aqui. É a luta dos negros e dos indígenas mais uma vez sendo usurpada.
Antes dos europeus chegarem aqui, já existiam organizações contra o modelo vigente, haviam negociações, estratégias de lutas, rompimentos, greves. Em 1903 foi fundado um dos primeiros sindicatos do Brasil, o Sindicato dos ‘Homens Pretos’, o sindicato dos Estivadores do Rio de Janeiro. Existem estudos que mostram que mais de um milhão de negros escravizados chegaram ali na região portuária do Rio, havia ali uma resistência. Todo esse histórico é contado também nos sambas hoje, eles mostram que são inúmeras as formas de resistências e de organização desta população que é silenciada historicamente.
5 – O ‘20 de novembro’ é o ‘Dia da Consciência Negra’, uma data que deve ser lembrada por todos e todas, mas é uma história ainda não contada e lembrada nos livros didáticos, nos materiais em sala, nos debates, nas rodas de conversas. Fale um pouco da importância de cada vez mais se falar na luta anti racista em sala de aula:
Nós população negra lutamos todos os dias, e todos os dias a gente luta pela vida. Existem marcos de reparação histórica por melhores condições de vida, por uma pauta anti racista e um desses marcos é o Dia da Consciência Negra no dia 20 de novembro, dia de Zumbi dos Palmares.
Para nós que tivemos usurpada a nossa história, qualquer trabalho e possibilidade de memória histórica que nos foi tirada é importante reivindicar. Reivindicar essas datas, essas pessoas, fazem lembrar essas histórias de luta por libertação do povo negro. A história brasileira não nos contempla, já que ela tentou marcar outras datas símbolos de emancipação da população negra. Uma das datas produzidas pela ideologia branca foi ‘13 de maio’. Eles constroem uma história de libertação da escravidão onde você tem uma princesa branca como atriz desse processo histórico de liberação, e nós sabemos que não. A libertação do povo negro se deu a partir da sua própria luta, da sua própria organização.
Os negros se organizavam em Quilombos. Os negros se organizavam em grupos associativos e, assim, eles construíram possibilidades reais para a sua libertação e para a sua emancipação. Então, por isso, hoje é tão importante o ‘20 de novembro’.
Uma das nossas referências de construção de uma nova sociedade é o exemplo que foi o Quilombo de Palmares, ele foi baseado na solidariedade, em outros valores que não são hegemônicos. Existem relatos que contam que no Quilombo de Palmares viviam indígenas, as produções eram coletivas. São valores anti racistas. Ele traz essa possibilidade de construção de uma nova sociedade, contrária da atual que é baseada em um modelo europeu.
Comment here