DestaquesEntrevistasLutasNotíciasÚltimas

Entrevista: Centenário do Paulo Freire


Neste último domingo foi comemorado o centenário do educador e filósofo Paulo Freire, o patrono da educação brasileira. O pernambucano que acreditava que a maneira de educar deveria ser intrinsecamente ligada à vida cotidiana dos alunos, o que é acessível e ajuda a entender a realidade, tem importância na perspectiva pedagógica mundial. E mais importante, enxergava a educação como ferramenta de transformação social e reivindicação de direitos.

Diante da efemeridade dessa personalidade tão importante, o SINTIFRJ entrevistou integrantes de um grupo de pesquisa com ênfase nos estudos sobre o pensamento de Bell Hooks e Paulo Freire, a respeito da atualidade e das contribuições do pensador. São os integrantes: Matheus Ivan, graduando em Pedagogia pela UNIFAL, Vinicius da Silva, egresso do IFRJ campus Nilópolis e graduando em Artes plásticas pela UFRJ, e Luana Luna,  Pedagoga do IFRJ do campus São João de Meriti, graduada em Pedagogia pela UERJ, mestre em Educação pela UFF e doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ. Eles produzem estudos e pesquisas sobre epistemologias alternativas, processos de produção de conhecimento e circulação de saberes a partir da experiência vivida.

Confira a entrevista abaixo:

Perguntas:

1 – Para você qual a perspectiva mais importante que Paulo Freire trouxe para a educação como um todo, uma vez que vários estudiosos do mundo todo lêem livros dele?

Vinicius da Silva: a recuperação da agência política e social do estudante de modo a “recentralizar” os sujeitos da educação. Um novo paradigma para se pensar a educação e a pedagogia. Horizontalidade no processo de ensino e aprendizagem e rompimento com a ideia de ensino que se divide, de forma hierárquica entre sujeito e objeto.

Luana Luna: Essa reflexão sobre a recentralização dos sujeitos da educação que Vinícius traz é muito importante e crucial na obra de Freire. Por exemplo, a pedagogia do oprimido, como proposta por Freire (2005), emerge da necessidade de reflexão sobre as estruturas opressoras com vistas ao trabalho de conscientização crítica que leva os oprimidos à transformação estrutural por meio da ação libertadora da práxis – consciência reflexiva, crítica, engajada e revolucionária. 

A pedagogia do oprimido – “[…] aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele” (FREIRE, 2005, p. 34) na luta permanente e incessante pela recuperação de sua humanidade, liberando-se de ser hospedeiro do próprio opressor – é a essência da pedagogia que está alicerçada na dialogicidade e na educação crítica. Esse trabalho, que só pode partir de quem entende o significado terrível de uma sociedade opressora, é a libertação de todos. 

Para Freire (2005, p. 38), os oprimidos […] sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autênticos. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, com consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra e não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo. Este é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar. A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se.

Freire construiu uma perspectiva muito importante também que é noção de educação bancária e a abordou ao longo da sua vasta obra como uma crítica contundente às formas de ensinar que se distanciam da reflexão, da criatividade e da transgressão libertadora. Sendo assim, no sistema bancário os estudantes são considerados meros depositários de informações, que as recebem pacientemente, devendo apenas memorizá-las e repeti-las. Nesse processo, o professor não reconhece que ele aprende quando ensina. Freire (2017, p. 25) foi insistente em seus livros ao defender que “[…] ensinar não é transferir conhecimentos.”

2- Esse ano é centenário do Paulo Freire, dentre todas essas décadas que mudanças significativas as ideias dele trouxeram para a educação pública brasileira?

Matheus Ivan: Freire nos convocou a pensar COM o povo, não sobre ele ou para ele. Entender as classes populares como produtoras de conhecimento, como sujeitos que já fazem parte do processo, que tem voz, que não precisam que doem um “espaço” de fala para que possam realizar seu direito humano de falar. (pensando essa fala como diálogo em freire, diálogo como fenômeno da existência humana). Paulo Freire, em Pedagogia do oprimido (2005, p. 63), é mais uma vez inspirador:

É como homens que os oprimidos têm de lutar e não como “coisas”. É precisamente porque reduzidos a quase “coisas” na relação de opressão em que estão, que se encontram destruídos. Para reconstruir-se é importante que ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta como quase “coisas”, para depois serem homens. É radical esta exigência. A ultrapassagem deste estado, em que se destroem, para o de homens, em que se reconstroem, não é a posteriori. A luta por esta reconstrução começa no autorreconhecimento de homens destruídos.

Luana Luna: Estou em total acordo com Matheus. Reforçaria apenas a efetividade de uma educação como prática da liberdade. Em linhas gerais, quando os oprimidos radicalizam a consciência, alçando patamar crítico, não só reconhecem as opressões como renunciam a elas. Desse modo, rompem com o silenciamento e a submissão, transgridem as fronteiras da opressão, erguendo-se e se constituindo como sujeitos. Esse movimento de libertação singular liberta o sujeito e a sua comunidade.

3 – Os Institutos Federais aplicam Paulo Freire? Se sim, como? Se não, por que?

Vinicius da Silva: nos meus 4 anos de curso, como estudante do ensino médio integrado, não…obviamente, depende muito do/a professor/a, mas não podemos perder de vista que a autonomia do educador/a está submetida a conselhos superiores e à lógicas rígidas que não são definidas por eles/as, e sim pelo sistema educacional como um todo…

Luana Luna: Para responder a essa pergunta eu gostaria de recuperar o movimento de Ocupação Estudantil protagonizado pelos estudantes do IFRJ no ano de 2016. A minha tese de doutorado defendida esse ano na UERJ foi sobre este movimento de luta dos nossos estudantes. 

Então, ao longo do meu processo de pesquisa, ouvindo as muitas falas dos estudantes narrando a experiência de ocupar a escola fui sendo sensibilizada a pensar sobre os reconhecimentos que, na luta, eles fizeram dos limites de uma educação marcadamente tecnicista, meritocrática e bancária, como nos diz Paulo Freire (2005), um modelo de educação ainda muito presente no IFRJ. Uma educação não dialógica e dominadora e que, naquele contexto, 2016, essa concepção educacional assumia deliberadamente a pedra de toque da contrarreforma do ensino médio enquanto um projeto político do governo de Michel Temer. Entendo que esses reconhecimentos levaram os estudantes a aprofundar uma consciência crítica que, no avançar do processo de luta, os conduziu progressivamente de uma condição de objetificação a de sujeição. Essa passagem de objeto para sujeito foi nomeada por Freire como a essência de uma “pedagogia do oprimido”. 

Então, veja, de forma bem breve, em alinhamento às percepções dos nossos estudantes, entendendo que as lutas contra as contrarreformas governamentais de 2016 não terminaram, ao contrário, o que vimos assistindo é um aprofundamento do projeto de educação dependente que se coloca para o Brasil hoje como manutenção de nossa condição colonial, eu acredito que, em oposição a esse agravamento, as saídas estão e estarão sempre são nos movimentos coletivos de luta. São nesses que podemos pavimentar um caminho para a aplicação das ideias Freireanas e isso ainda é algo a ser construido no âmbito do IFRJ.

4 – Como a Reforma do Ensino Médio afeta aquilo que Paulo Freire defendia?

Matheus Ivan: Afeta na distorção do conceito de autonomia. Embora o discurso oficial do ensino médio esteja ancorado no principio da escolha dos estudantes, tanto de itinerários como de projetos de vida, a ideia de autonomia não está voltada para a construção de um ser humano que se pensa e pensa o mundo, que busca continuamente sua humanização, mas sim, uma autonomia voltada para si mesmo, para a sua própria individualidade. Uma vez que o novo ensino médio encontra no empreendorismo sua epistemologia. Não há uma pedagogia da autonomia no novo ensino médio, mas uma pedagogia da individualidade, da autonomia para o neoliberalismo.

Luana Luna: Tenho acordo com o que Matheus colocou. Recuperando especificamente as ideias de Freire, eu entendo que a contrarreforma do Ensino Médio (eu entendo como contrarreforma e não reforma!), no âmbito da subjetividade, ela é a expressão do que Freire (1979) refletia sobre a autodesvalia (desvalorização de si e da própria vida), ela fere a dignidade humana, uma característica da opressão que resulta da aceitação de uma definição imposta sobre os oprimidos pelos opressores, a partir da introjeção de uma consciência opressora. 

A falácia meritocrática do empreendedorismo, que é racista, como “solução” para as desigualdades que são frutos podres do modo de produção capitalista atualiza toda uma ideologia de competência/incompetência, de capacidade/incapacidade, de sucesso/fracasso para aquelas e aqueles que são postos à margem e que de tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, aprendem a falar de si a partir de critérios que lhes são impostos. A autodesvalia enquanto consciência opressora que se forja em condições de dominação, aprisiona os oprimidos no amor à morte como a negação da vida. O pensamento Freireano nos mostra que é na luta, no encontro, na comunhão que homens e mulheres, como seres inacabados que se sabem inacabados, retomam o caminho do amor à vida aspirando à liberdade, libertando-se e encantando-se. E esse movimento jamais poderá se desenvolver na exclusividade, na individualidade e na aniquilação do outro.

5- Qual a importância de reafirmar as ideias do Paulo Freire em tempos de fascismo no Brasil?

Luana Luna: Eu acredito fortemente que as ideias de Freire nos convocam a necessidade urgente de construção de pertencimento, “saber que se é de um coletivo” . Relaciona-se aos encontros e reconhecimentos que realizamos ao longo da vida e ao seu potencial libertador e humanizado. A ideia de encontro aqui defendida com inspiração Freireana diz respeito ao caráter comunitário, entendendo o coletivo como espaço de reconstrução do ser e da reconstrução do próprio coletivo transgredindo a normatividade e a modelização castradora e desencantada representada em modelos de escolas que mais valorizam números e técnicas do que a subjetividade e a humanização dos processos de aprender e ensinar. Retomar o potencial de encanto da escola, para que ela não morra enquanto potência de vida, fazer da experiência educacional o lugar do encontro que liberta, integra, alegra, cria pertença, amorosidade e nos humaniza. E o encontro, a comunhão das mulheres e dos homens mediatizados pelo mundo que promove uma educação crítica e libertadora.

 

 

Referências Bibliográficas citadas na entrevista:

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

________. Educação e mudança. Tradução de Moacir Gadotti e Lilian Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Guerra, 1979. (Coleção Educação e Comunicação; v. 1).

________. Pedagogia da autonomia. 55. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017a.

Referências Bibliográficas sugeridas para aprofundamento de estudos:

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 45. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

________. Política e educação. Organização de Ana Maria de Araújo Freire. 5. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2020.

________. Por uma pedagogia da pergunta. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017b.