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Programa quer transformar educação em mercadoria

O SINTIFRJ preparou uma série de entrevistas sobre o ‘Programa Future-se’, o primeiro a falar sobre o tema foi João Carlos Escosteguy Filho, 34 anos, docente EBTT de História e da pós graduação em Desenvolvimento Regional e Sustentabilidade e da pós-graduação em Educação em Direitos Humanos, no campus Pinheiral do IFRJ. Para ele, neste novo modelo, as contratações dos professores seriam intermediadas por Organizações Sociais (OSs), via CLT, o que não garante estabilidade. Quer saber mais? Leia entrevista completa abaixo: 

1) O que é o Programa Future-se: Quais são os principais pontos, novidades, propostas pelo Mec? Você considera que este projeto foi discutido com a comunidade acadêmica?

 O Programa Future-se, basicamente, é uma proposta que visa à mudança radical na concepção hoje em vigor sobre “educação pública” no nível superior e nos Institutos Federais. Ele propõe que as universidades e os institutos passem a ser os principais responsáveis por seu auto-financiamento, buscando junto ao mercado, especialmente via capitalização dos próprios bens públicos, os recursos necessários à manutenção das atividades de pesquisa, ensino e extensão (sendo que esse último termo mal aparece nas propostas e falas sobre o programa).

Nesse sentido, o Future-se representa a radicalização de uma concepção de educação que, já há algumas décadas, vem substituindo concepções republicanas e públicas por uma “lógica da aprendizagem” que associa “educação” a “formação individual voltada ao mercado de trabalho”. Trata-se do rompimento definitivo com a responsabilidade pública sobre a educação, compreendendo-a como um investimento que deve ser feito privativamente, de acordo com os interesses de quem pode pagar.

Assim, o Future-se divide a existência das universidades e dos institutos em dois grandes grupos: aqueles que desenvolvem pesquisas de interesse do mercado (e que, portanto, devem ir buscar seus recursos junto aos grupos econômicos) e aqueles que, desenvolvendo pesquisas sem financiadores privados (seja porque não geram retorno lucrativo imediato, seja porque não atendem aos preceitos dos financiadores privados), acabariam por perder seu sentido de existência. As carreiras ligadas a esse segundo grupo deveriam ser atendidas pela educação privada, desresponsabilizando o Estado e a coletividade nacional de seu financiamento. 

 2) como esse projeto se insere no contexto político e cultural dos tempos recentes do país?

O Future-se representa o predomínio da lógica liberal-conservadora na condução da política educacional do governo atual. Atende aos anseios conservadores da base eleitoral do governo ao priorizar um ensino tecnicista e que recusa o que consideram “ideologias” (como se o tecnicismo, em si, não tivesse base ideológica…). Da mesma forma, o programa se conecta ao programa de governo bolsonarista ao priorizar áreas de exatas e tecnológicas, em uma dimensão de ciência aplicada, mais voltada às relações com o mercado, reduzindo ainda mais o papel das humanidades, linguagens, licenciaturas, ciência básica etc. Atende também às demandas neoliberais, uma vez que, como dito, desresponsabiliza o Estado pelo financiamento pleno da educação superior e dos institutos federais, transferindo para as próprias IES a tarefa de se auto-financiarem a partir das capacidades específicas de atrair dinheiro privado.

Outro aspecto da conexão do Future-se ao cenário atual diz respeito à forma de sua implementação. Considerando o sucesso das IES, especialmente federais, no conjunto do ensino superior (a virtual totalidade da produção científica no país, o virtual monopólio da qualidade na formação superior, independente dos critérios utilizados, o estrondoso destaque que os IF têm em todos os rankings usados pelo próprio governo etc.) como poderia o governo Bolsonaro implementar o Future-se? Ora, se não pode atribuir às IES um índice de fracasso, restam os ataques culturais. Ao iniciar uma campanha de destruição da imagem das universidades públicas a partir de uma caça de costumes, o próprio MEC aponta caminhos para a transformação das IES via Future-se. Como não podem atacar os números, estão atacando estudantes (vistos cada vez mais como “vagabundos maconheiros”) e professores (cada vez mais acusados de “doutrinação”).

 2)  As empresas privadas terão acesso às universidades à partir do ‘fundo privado’ e das OS se tal medida for aprovada? Isso prejudicará a autonomia científica e ideológica das universidades? 

Sem dúvida alguma. O Future-se permite, no limite, que o mercado paute as atividades de ensino, pesquisa e extensão nas universidades e institutos federais, via OS. Isso porque o projeto dá às OS poder suficiente para o exercício de quaisquer atribuições relacionadas à governança e gestão das IFES. No limite, cursos inteiros podem ser montados e desmontados ao sabor dos financiadores, já que apenas aqueles mais atrativos ao mercado poderiam garantir financiamento suficiente para sua existência.

É uma visão que enxerga o mercado em parceria com as universidades, e não em contradição. Em outras palavras: é uma visão que enxerga a universidade como algo a ser subordinado aos interesses empresariais, e não como um espaço de crítica desses próprios interesses.

3) O que as universidades, os trabalhadores destas universidades, e os mais pobres que nos últimos anos tiveram um pouco mais de acesso a elas, podem sofrer com um programa como este sendo implementado nas universidades federais e Institutos Federais? Isso pode atingir programas de ação afirmativa, por exemplo ou os PAE (programas de assistência estudantil)?

 O Future-se é um primeiro passo para a redução de vagas em universidades públicas, já que os cursos considerados indignos de financiamento pelo mercado podem perfeitamente desaparecer caso o programa seja implementado. Dificilmente os cursos de “sucesso”, do ponto de vista do mercado, ampliariam suficientemente suas vagas para compensar essas perdas. O que significa que boa parte das vagas hoje existentes nas universidades públicas seria, no médio-longo prazo, transferida para as universidades privadas, que já são responsáveis por mais de 70% das matrículas no ensino superior.

O mesmo em relação aos programas de assistência estudantil e de ações afirmativas. Como o Future-se desobriga o Estado do financiamento da educação, os recursos para quaisquer programas do tipo dependeriam da capacidade das IES de se sustentarem via mercado. Perde-se a ideia de educação pública como direito de todos. Passa esse direito a ser ditado pelos interesses privados em seu financiamento.

 4) Para terminar, o que os movimentos sociais, os servidores, trabalhadores, estudantes e toda a sociedade podem fazer para que um programa como este não seja implementado? Você enxerga alguma chance de reversão desse quadro?

A pergunta exige duas respostas diferentes. Em relação especificamente ao Future-se, como manifestação de uma tendência de privatização da educação, tenho esperança no combate. Especialmente porque a radicalidade do programa significa, na prática, o fim da educação superior pública e dos IF como conhecemos. Nesse sentido, a própria iniciativa que tem rondado o governo de implementar o programa via Medida Provisória mostra que a resistência a essa radicalidade pode gerar uma onda de recusas que tornaria a implementação do Future-se um campo de batalha. Do qual podemos sair vitoriosos.

Porém, é preciso destacar que o Future-se representa elementos que já vêm sendo implementados nas IES há pelo menos duas décadas. Nesse sentido, a recusa ao Future-se não pode se limitar ao programa, mas deve ser feita também em relação à sua linguagem. Pensar a educação de forma mais humanista e republicana, de forma mais emancipatória e crítica, de modo mais democrático e dialógico, é a única forma de superar elementos do Future-se que já vêm sendo implementados de maneira “suave” no Brasil. 

Cito alguns exemplos que devem ser combatidos e que estão todos os dias nas salas de aula, conselhos de classe e reuniões pedagógicas pelo país: educação como sinônimo de domínio de habilidades e competências, educação como capital humano, lógica da aprendizagem, lógica avaliativa via provas e ranqueamento, associação da qualidade do ensino a métricas de aprovação em ENEM e nota no PISA etc. Esses exemplos, cuja explicitação exigiria um outro espaço e mais tempo, nos atravessam cotidianamente, com ou sem Future-se. Resistir ao Future-se exige, portanto, a construção de uma outra lógica educacional. Essa segunda batalha será muito mais longa e difícil.

 

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