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Casos de “auto de resistência” com crianças e adolescentes no Rio

Casos de “auto de resistência” com crianças e adolescentes no Rio: violência e injustiça contra quem não tem chance de crescer

Postura de autoridades passa recado de garantia de impunidade a policiais que matam. Taxa de letalidade violenta na cidade — que inclui mortes por intervenção policial — chega a ser 9 vezes maior entre crianças e adolescentes negros

A extrema direita chegou ao poder em 2019 e os primeiros meses já mostraram que este e provavelmente os próximos anos não serão fáceis para quem vive e sobrevive nas favelas e periferias brasileiras. Recordemos: Jair Bolsonaro ganhou as eleições presidenciais “fazendo arminha” e, no Rio, o atual governador, Wilson Witzel antes mesmo de se eleger já assumia posturas abertamente racistas, pró-militarização e elitistas. Não por acaso, somente entre janeiro e abril, o Rio chegou a ter o maior número de casos de auto de resistência dos últimos 20: foram mais de 400.

Um semestre foi suficiente para tirar do caminho qualquer sombra de dúvida a respeito da óbvia associação entre os gestos, falas e práticas destas autoridades e o aprofundamento do quadro de genocídio da população negra, militarização do cotidiano e, consequentemente, de fortalecimento de uma polícia que se sente à vontade para matar (mas só em certas regiões).

As crianças e adolescentes das favelas, assim como outros de qualquer parte das cidades do país, deveriam ter direito à infância: a estudar, brincar na rua, comprar doce, jogar futebol e soltar pipa. Mas, a julgar pela permissão deliberada do uso irresponsável da força nestes territórios ou pela passividade histórica dos governos diante da violência contra estes cidadãos e cidadãs em fase de formação, os governantes de hoje e de ontem devem pensar que crianças e adolescentes negros moradores de periferias podem ser mortos. Como se com eles não morressem também sonhos seus e de suas famílias.

Dados do Dossiê Criança e Adolescente, do Instituto de Segurança Pública (ISP), apontam que em 2017, foram 635 crianças e adolescentes assassinados no estado do Rio. Os números foram calculados a partir do cruzamento de registros da Polícia Civil e de instituições de saúde. O contexto é particularmente duro para os adolescentes: mais de um quarto (28,6%) dessas mortes são homicídios decorrentes de intervenção policial. Entre 2007 e 2017, a taxa de assassinatos nesta faixa etária subiu 68%.

Ainda de acordo com o Dossiê, a letalidade violenta (que envolve homicídio doloso, homicídio decorrente de intervenção policial, lesão corporal seguida de morte e latrocínio) atinge principalmente os negros. No Rio de Janeiro, a taxa para “crianças e adolescentes negros é de 45,3 vítimas por 100 mil habitantes negros de 0 a 17 anos, quase nove vezes maior do que a taxa entre as crianças e adolescentes brancos, 5,1 vítimas”, mostra o documento. “Ainda sobre o perfil das vítimas, há a predominância do sexo masculino (…), 95% (167 vítimas) dos homicídios decorrentes de intervenção policial e 89% (403 vítimas) dos homicídios dolosos foram perpetrados contra indivíduos do sexo masculino”, revela o Dossiê.

Um dos casos que ganhou destaque internacional foi o do garoto Maicon, ocorrido há mais de 20 anos no Rio. Maicon tinha dois anos quando foi assassinado pela polícia na favela de Acari, Zona Norte da cidade. Jose Luiz Farias da Silva, pai de Maicon, vem há 23 anos denunciando a morte do filho e buscando respostas para o crime. “O caso ficou como auto de resistência. De lá pra cá, virei militante. No dia 15 de abril completaram 23 anos de um caso absurdo na história não só do Rio de Janeiro, mas do país: uma criança ficou conhecida como marginal aos 2 anos de idade. O Brasil violou meu direito de ter a resposta sobre o caso. Mais ainda, eles violaram o direito à vida do meu filho”, disse José Luiz. O mais surpreende é que o caso de Maicon prescreveu, mostrando incapacidade ou a falta de empenho nas investigações.

Natália Damazio, que trabalhou como advogada e pesquisadora da ONG Justiça Global, começou atuar no litígio (prática jurídica para quando não há consenso entre as partes) na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre os anos de 2014 e 2015. “Em relação ao assassinato do Maicon houve uma troca de tiros em Acari. Por isso se aplicou auto de resistência ao menino. Por falta de provas foi arquivado. Uma vez arquivado o caso, só novas provas conseguiriam abrir”, explicou.

A advogada afirma que depois de muito custo, no dia da prescrição foi feita uma reunião com o Ministério Público do Rio de Janeiro. Segundo Damazio, no encontro estavam mais querendo justificar o fim do caso do que dar respostas sobre o que poderia ser feito. Agora o caso é acompanhado apenas internacionalmente.

José Luiz Faria da Silva, pai de Maicon, que foi vítima do caso de auto de resistência que ganhou destaque internacional | Foto: Agência Brasil

“Estamos falando de um caso de 20 anos. Não era para ter durado 20 anos. Existem depoimentos nítidos. Um policial até confessa que disparou, sim, um tiro, mas não foi levado adiante. É assustador porque existia um decreto na época chamado de gratificação faroeste. Neste episódio eles [os policiais] receberam a premiação por causa do ‘sucesso nesta operação”, lembrou a advogada.

Recado das autoridades é de garantia de impunidade

Assim como a de Maicon diversas outras mortes violentas de crianças e adolescentes acontecem cotidianamente. “São vários casos de crianças, bebês assassinados pela polícia e é muito grave. Você imagina o que aconteceria nesse país, nesse estado, se a polícia militar do Rio de Janeiro assassinasse um menino de 10 anos saindo de um colégio particular no Leblon? A cidade iria parar, o país iria parar, o secretário iria cair, o governador iria cair, até presidente. Mas não. Como são jovens negros moradores de favelas funciona todo aquele imaginário que parte da sociedade carrega de que são ‘sementinhas do mal’ ou coisa parecida”, afirma Lucas Pedretti, historiador que pesquisa a violência de Estado na ditadura e na democracia.

Para Pedretti é como se não importasse o que a pessoa fez. O fato de ser negro, morar numa favela, já faz com que não só desconfiem, mas digam que é criminoso. “Quando ocorre com uma criança é ainda mais grave. É a ideia de que por ser negro, por morar ali na favela, aquela criança iria se tornar um bandido. Então essa execução, esse assassinato é visto como algo natural por parte expressiva da sociedade, que permite que esse tipo de coisa continue acontecendo. Fato é que ninguém merece tal tratamento”, complementa.

Uma série de questões fazem com que casos como o de Maicon não sejam investigados, entre elas o corporativismo policial e a criminalização da pobreza. Tais fatores transformam homicídios em “efeito colateral” ou “bala perdida”. “Temos um grave problema em relação à perícia. Ela é feita pela Polícia Civil, sem que exista isenção. É preciso que se tenha uma perícia independente. O segundo ponto é quando se coloca como ‘auto de resistência’, na hora da denúncia é analisado que o fato ocorreu. Mas o fato não é punível porque tem-se a ideia de que a pessoa [o policial] não teve culpa do ato. Isto ocorre porque casos como estes acontecem em favelas. Não se investiga de quem parte o disparo, se investiga a vítima”, observa a advogada Natalia Damazio.

Também falta investigação dos autos de resistência. O pesquisador Lucas Pedretti lembra que sem julgamento caso a caso, acabam todos sem culpados. Uma verdadeira permissão para matar. “Há uma legitimação das autoridades públicas também por causa da falta de interesse nas investigações. Esse aumento no número de autos de resistência é grave. Infelizmente a gente não pode dizer que surpreende, pois corresponde às expectativas quando se tem um governador que afirma que ‘vão mirar na cabecinha”, critica.

Assim, o genocídio é um processo organizado pelos próprios poderes oficiais: os governos verbalizam e ordenam, a polícia pratica e não investiga. São mecanismos, instrumentos — inclusive legais — que permitem a reprodução desse modelo e garantem a impunidade a esse policial que assassina, que executa.

Em 2017, ainda no governo de Michel Temer, o julgamento de assassinatos cometidos por militares contra civis foi transferido de volta para a Justiça Militar. Se na Justiça Civil o número de casos efetivamente investigados, julgados e condenados era pequeno, este pode ser um estímulo ainda maior à impunidade. Dessa forma, toda a lógica opera mostrando ao policial na ponta que ele pode executar e que terá a garantia de não ser responsabilizado por isso.

Reportagem escrita por Gizele Martins e Jessica Santos com a parceria do Fundo Brasil de Direitos Humanos.

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