Notícias

Os novos desafios da esquerda brasileira

Na edição 6 do Jornal SINTIFRJ, trazemos uma entrevista com Ricardo Antunes. Ele é sociólogo marxista e um dos mais influentes pensadores do país no tema mundo do trabalho. Atualmente, é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e leciona disciplinas como Sociologia do Trabalho e Sociologia de Karl Marx. Antunes é também um dos mais importantes teóricos da obra marxiana da América Latina e edita atualmente a coleção ‘Mundo do Trabalho’ pela Boitempo Editorial. Neste bate-papo, ele fala sobre os novos desafios dos sindicatos, partidos e movimentos sociais diante do governo Bolsonaro, aponta saídas e afirma a importância de voltar à história de luta para que a esquerda siga adiante. Confira a entrevista:

JORNAL SINTIFRJ – Com o advento das novas tecnologias, além daquilo que você autodenomina como degradação da classe trabalhadora, como você avalia essa nova configuração do mundo do trabalho?

Desde que o capitalismo se reestruturou, com base no ideário neoliberal comandado pela hegemonia do capitalismo financeiro, um processo de profundas transformações foi aberto, principalmente com a reestruturação permanente do capital ampliando a flexibilização, a desregulamentação e, consequentemente, a precarização e a intensificação da exploração da força de trabalho, cuja atuação é global. Este processo se acentuou a partir da crise de 2008 e 2009, atingindo inicialmente os países do norte do capitalismo e os países centrais.
Tudo isso fez com que se redesenhasse no mundo uma nova fase de impulsão capitalista marcada por uma enorme reestruturação produtiva permanente do capital que nos leva agora à chamada Indústria 4.0, em que a força de trabalho é reduzida a custo. Isso significa que o menor valor a ser pago pela classe trabalhadora, combinado com desregulamentação e flexibilização, é uma imposição.
No Brasil, isso vem acontecendo desde as últimas décadas. Paralelamente, há uma relativa retração da indústria em função da entrada da China como a grande maquinofatura global. Isto fez com que o capitalismo brasileiro se fortalecesse no agronegócio e no setor de serviços. Num contexto de desindustrialização em que muitos dos postos de trabalhos são substituídos pelo trabalho intermitente. Temos, hoje, uma classe trabalhadora brasileira que, cada vez mais, tem níveis de informalidade, tanto na indústria, quanto na agricultura, mas especialmente nos serviços.
A nossa indústria nasceu a partir do significado da precarização. Se a agricultura sempre foi pautada pela precarização dos serviços, combinada a uma enorme ação da terceirização, faz com que a gente tenha no Brasil uma classe trabalhadora mais distante do trabalho contratado e regulamentado, e mais próximo da intermitência, da desregulamentação, da informalidade e, naturalmente, oscilando nos bolsões que caracterizam o subemprego e o desemprego no Brasil. No governo Temer houve praticamente o que chamo de terceirização do total, ela é quase total, inclusive, no setor público.

Diante desse cenário, como você identifica a situação da educação pública brasileira?

Nós sabemos que uma das máximas do ideário neoliberal é a devastação da atividade pública, especialmente, aquela que é considerada improdutiva para o capital. Ou seja, aquela que não cria diretamente mais-valia, a que não gera lucro. Na época de Fernando Henrique, houve uma política de privatização do setor público com valores que marcam e caracterizam as empresas capitalistas modernas: flexibilização, terceirização e mudanças das condições de trabalho público para formas cada vez mais terceirizadas. O que fez com que começassem a ter no seio do Estado um conjunto particular de práticas que se aproximam ao setor privado na educação, na saúde e em tantos outros setores. Na época de Lula, houve uma política dual. Por um lado há continuidade por meio de propostas de financiamento do ensino privado superior, de modo a garantir isenção de impostos e outras formas de apoio. A classe trabalhadora empobrecida brasileira – que não tinha acesso à universidade pública ou ao ensino público de plano médio e superior – migrou para as universidades privadas. Por outro lado, houve também um processo de implantação e de ampliação de institutos federais e de universidades públicas.
É evidente que depois do impeachment de Dilma, com Temer e agora com Bolsonaro, a lógica é de privatização total. Para eles, não faz sentido imaginar uma universidade pública que se expanda e necessite de recursos. A ordem agora é terceirizar tudo. A ideia é criar cargos de professores substitutos para extinguir concursos públicos, e quando se faz concurso, não há a contratação efetiva, ou seja, há uma miríade de contradições de trabalho, de contratos diferenciados de trabalho, de mudanças do setor da previdência pública do Estado que acabam acarretando naturalmente uma precarização do corpo funcional, técnico-administrativo e docente.

Uma das medidas de desmonte no governo Temer que se processou foi o ataque à legislação social protetora do trabalho, terceirização total, reformas trabalhistas, trabalho intermitente; dentre outras ações. Como você observa o impacto no serviço público?

O objetivo pretendido tanto por Temer, quanto pelo governo atual, é de dar continuidade de modo muito mais intenso, à política de conversão no trabalho público e, na atividade pública como pautada pelo cálculo econômico e pela racionalidade empresarial. No cálculo econômico da racionalidade empresarial, salário é custo, que significa salário. E como se corta salário? Demitindo trabalhadores. Para demitir trabalhadores, é preciso ter uma legislação que permita a demissão.
O primeiro passo que estamos vendo é o de inchar o serviço público de trabalhadores terceirizados. Se tem trabalho, eles se mantêm, caso contrário são desligados.
Nessa reforma, além da prática antissindical, quando se quer impedir que os sindicatos tenham a cota de associação de mensalidade de associados descontados em folha, há também uma proposta embutida no projeto do Temer ao Bolsonaro, a de retração e diminuição e até o fim da Justiça do Trabalho.

Diante deste primeiro semestre do desgoverno Bolsonaro, quais são os desafios da classe trabalhadora organizada, especialmente os sindicatos. Quais são os limites e oportunidades de organização nessa ofensiva?

Na conjuntura atual sobre o governo Bolsonaro e a política econômica do Guedes, há uma dupla dimensão: não só a ideia de privatizar todos os espaços da universidade pública, como também uma guerra ideológica, uma vez que nesse governo de extrema-direita entende que as universidades são o polo ou um dos polos fundamentais que merecem sofrer um ataque profundo. Estamos passando agora por uma ameaça concreta de 30% de corte nas universidades públicas. O corte é brutal, o que cria um desafio profundo para os sindicatos, o de lutarem pela universidade pública e, ao mesmo tempo, pela autonomia científica da universidade.

Os desafios dos sindicatos é o de primeiro compreender essa morfologia do trabalho, saber quem é o nosso professor; aquele que está no sistema efetivo; aquele que está provisoriamente como substituto e todas essas outras modalidades de trabalho que estão sendo criadas, além de resistir a esse processo de terceirização para não contratação. Isto obrigará os sindicatos a refletir mais profundamente como representar esse conjunto heterogêneo e composto de professores e professoras e como enfrentar essa política agressiva antissindical que quer, inclusive, minar financeiramente os sindicatos.
As associações de professores, como elas surgiram fundamentalmente a partir de 1988, nunca dependeram do imposto sindical para sobreviver, apenas da cotização autônoma de seus associados. Ou seja. os sindicatos devem se reinventar para que não perca a base sindical que conseguiu conquistar, inclusive, durante a luta na Ditadura Militar.

Quanto à reforma da previdência, como você tem visto a proposta do governo e quais são as possibilidades dos movimentos sociais, da esquerda partidária e sindical de resistirem a essa proposta e a barrar a reforma do governo Bolsonaro?

Os sindicatos que nós temos foram muito importantes na construção do novo sindicalismo, movimento que nasceu a partir de meados de 1970 e teve o seu polo central mais importante no ABC paulista, com as greves. E esse novo sindicalismo expandiu-se do mundo industrial, rural, de serviços e para o mundo do setor público.
Nas décadas anteriores, os movimentos sociais ganharam força como o movimento dos sem terra, dos trabalhadores sem teto, feminista, movimento negro, de juventude, da periferia, o movimento das comunidades indígenas, todos centros de oposição ao governo.
Esses movimentos sociais, por estarem representados em um contingente mais heterogêneo e para além das duas respectivas categorias, aprenderam a ter uma forma de representação mais horizontal e menos vertical. Ou seja, estamos num momento em que os sindicatos devem aprender com os movimentos sociais, assim como os movimentos sociais aprenderam com o novo sindicalismo nos anos 70, 80 e 90.
A demolição da previdência pública será enfrentada a partir dessa confluência entre os movimentos sociais, juventude e os sindicatos. Ou seja, é importante primeiro que sindicatos, movimentos sociais, opinião pública, intelectualidade, juventude e movimentos de todos os setores mostrem em todos os espaços como nas ruas, na TV, nos jornais, na sala de aula, na praça, que não é possível uma previdência em um momento de grande desemprego e que a ampliação da jornada de trabalho aumenta o desemprego.
A reforma da previdência junto com a reforma trabalhista são expressões de destruição. Cada trabalhador e cada trabalhadora terão que pagar por mês para que daqui a 40 anos ou 50 anos tenham a sua aposentadoria.
No regime chileno, por exemplo, os trabalhadores recebem entre metade e um terço do salário mínimo. O empobrecimento foi brutal com o sistema de capitalização. Com o sistema de capitalização proposto, o Estado não irá colocar recurso na previdência e o empresariado também não. Este é um sistema que visa criar a capitalização para as classes médias com um sistema de assistencialismo, e os que chegarem aos 60 anos receberão 400 reais, e só depois de 70 anos, teriam o salário mínimo integral.

Por fim, como você avalia o processo de organização da esquerda na rua, no parlamento e nos sindicatos?

É preciso rever tudo o que foi feito pela esquerda desde a fundação do PT. Foi um salto importante na esquerda brasileira quando ele nasceu, mesmo com todas as tensões, o PT não buscava um partido definido, mas uma autonomia política para a classe trabalhadora, mas isso não se concretizou.
As esquerdas mais moderadas e mais críticas de hoje não podem repetir o erro de jogar todo o seu oxigênio na ação parlamentar. Bolsonaro ganhou as eleições, mas fez uma candidatura contra o sistema, contra corrupção e em um contexto de muito desgaste do PT e das esquerdas, o que fez ele adquirir força popular.
Não vi nas eleições de outubro uma proposta ousada da esquerda, algo diferente do que Lula e Dilma fizeram. Era a repetição do mesmo. A centralidade das ações das esquerdas não podem ter como eixo a luta institucional parlamentar. Nós só teremos força no parlamento se as nossas candidaturas tiverem forte impulsão social. Se não tiverem impulsão social, o que mais vemos é um conjunto muito expressivo de candidatos de esquerda que saem das lutas sociais e chegam no parlamento. No final, gostam tanto da vida parlamentar e convivem tão bem com ela, que muitos vão parar até no cárcere.
Dentre tantas lutas, temos hoje três grandes ferramentais: os movimentos sociais, os sindicatos e os partidos. A força dos movimentos sociais é na percepção da vida cotidiana de quem a representa: sem teto, sem terra, mulheres, negros, comunidades indígenas, os que lutam contra as barragens, juventude, periferia etc.
Os sindicatos representam a categoria, mas na representação, se tiver uma visão majoritariamente categorial dos sindicatos, não haverá a perspectiva do metalúrgico como classe trabalhadora, do professor como classe trabalhadora, do bancário como classe trabalhadora, ou seja, muitas vezes os sindicatos se perdem no espaço de luta da sua categoria, e são eles que têm um papel fundamental para diminuir os níveis de exploração do trabalho.
Já os partidos que estão à esquerda sabem que o capitalismo não é a resposta para a humanidade. Eles sabem e não abrem mão. Mas entre essa proposta do seu ideário, para onde vamos? E entre o aqui e agora, há um fosso. Se abandonarmos as três ferramentas que temos, ficaremos sem nada. Sabemos que as classes burguesas não abandonam suas ferramentas, pelo contrário, elas totalizam e controlam, além de colocá-las contra as forças do trabalho por meio de aparato repressivo, aparato ideológico presente na grande mídia, o legislativo e judiciário, tudo voltado para os seus interesses. Temos que pensar nas nossas lutas sem hegemonia de uma para a outra. Só assim daremos organicidade ao mosaico de lutas sociais que hoje estão muito dispersas, mas isto obriga a pensar num novo modo de vida.

Comment here