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Os frutos da Ditadura Militar no Brasil

Ditadura Militar no Brasil – Lembrar para não esquecer!

João Costa, jornalista e um dos integrantes do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM), movimento formado por familiares e sobreviventes da Ditadura Militar no Brasil, nos deu essa entrevista sobre o histórico de como e em que época surgiu a política do “auto de resistência”, já que mesmo em tempos de democracia, 2018 foi o ano em que o número de mortes por “auto de resistência” alcançou o maior número da história, quase 2 mil casos no Rio de Janeiro.

Nesse bate papo, ele fala ainda sobre a política do medo e da criminalização da pobreza, já agitadas pelo atual governo mesmo ainda quando era candidato no final de 2018. E declara, com base nesses 55 anos do início da ditadura, que o objetivo dos governantes, atualmente, em pleno 2019, é que o Estado tenha controle sobre os corpos empobrecidos, sendo o “auto de resistência”, apenas mais uma das heranças políticas implementadas. O que para João, o governo atual é uma restauração grotesca dos piores momentos do século passado vestida como “democracia”.

O SINTIFRJ, sindicato de luta, publica essa entrevista como forma de lembrar que ainda existem frutos terríveis da ditadura e que não existem motivos para uma data como esta ser comemorada. Materiais como estes devem servir de fontes em sala de aula, devem ser debatidos, discutidos, dialogados, jamais esquecidos!

Não devemos comemorar a ditadura! Nosso compromisso é com a democracia e luta do povo!

Leia abaixo a entrevista com João Costa:

1 – Há mais de três décadas o nosso país luta na garantia de uma democracia plena para todos e todas, mas atualmente, temos um presidente da República que diz que devemos comemorar o 1º de abril, sendo esta uma data de lembrança dos terríveis tempos da ditadura militar no Brasil, qual sua opinião sobre este momento político do país?

É abominável um presidente eleito (e, no caso, sabe-se como, embora não se saiba tudo) afrontar, entre outros, a lei, a Constituição e todos os acordos nacionais e internacionais, que zelam pelo bem estar da pessoa e a paz, mundialmente. Para se fazer admirado por admirar ditadores, assassinos, torturadores e autores de “desaparecimentos forçados” – crimes condenados nos tribunais internacionais como de “lesa-humanidade” e, portanto, imprescritíveis – e pelo prazer subalterno de “alinhar o país comercialmente” ao comando da violência e da dominação mundial, pelo império militar do mercado e do consumo, dito “democrático”.

Mas, também um absurdo estelionato eleitoral: “reafirmar” agora o que disse em campanha, minimizado como “brincadeira”, para não perder votos e se eleger promovendo afronta aos direitos humanos no país. A marola jurídica que houve no comemora/não comemora revela que não se trata de uma questão pessoal ou familiar, mas da política de um governo montado para servir de apoio a igrejas, bancos, grandes empresários e estratégias militares; composto por generais e militares do Alto Comando das Forças Armadas, agora eleito, para atender aos planos imperiais-militares do deus mercado. O mundo inteiro já viu: “o rei está nu”!

Há 55 anos do golpe dos ditadores, assiste-se, infelizmente, ao desdobramento de um processo político que o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ denuncia há 34 anos, e que deu origem às lutas que desenvolve até hoje: resgatar a memória social das lutas políticas e populares do desmonte democrático feito pelos militares.

A noite de 21 anos de ditadores, e que se não explica a “falta de memória” popular do que foram aquelas trevas, ajuda a entender a desmobilização e aparente apatia ante o que está ocorrendo, já sensível às luzes do porvir, pois somos mais. A Constituição de 1988 não significou, como sempre se soube, o fim da ditadura (a não ser, temporariamente, para as classes médias e alta), mas apenas “uma trégua”, para o acúmulo de forças e um retorno “triunfal” dos militares ao poder, após treinados pela ONU, no Haiti. Não por acaso, o apoio civil para o “sucesso” atual é o das mesmas forças econômicas, políticas e religiosas (com reforço neo-pentecostalista, então insignificante) que promoveram e se beneficiaram da ideologia golpista e ditatorial de 1964. Apenas auxiliadas, agora, pela força eleitoral das milícias para-militares e a intervenção militar comandada pelo Exército, que não nos poupou sequer da execução de Marielle e Anderson, e inúmeras lideranças populares.

2 – Como nasceu essa política de auto de resistência?

O “auto-de-resistência” foi criado como medida interna da própria polícia, a fim de justificar e minimizar a prisão em flagrante de policiais autores de homicídio, em 1969, após o ai-5 (dezembro de 1968). Imediatamente, a expressão passou a ser usada pela imprensa “naturalizando” as versões militares e da polícia para os “teatrinhos” (como os próprios diziam à época) com que justificavam os assassinatos de presos políticos na tortura: às vezes, também explicados como “excessos” de tratamento ou “suicídio”.

Na época, havia o “Esquadrão da Morte”, do qual faziam parte os “homens de ouro da polícia” – todos assassinos contumazes e impunes, como o confesso Cláudio Guerra reconhece, e muitos, ainda hoje, passaram a ser donos de empresas de segurança (bancária, particular [da aristocracia rica], de valores, das seguradoras e dos grandes empresários, especialmente, dos comprometidos com a ditadura). O apelido era elogioso e repetido a todo momento pelo rádio e a televisão. Fazia parte do noticiário diário e das manchetes, cada vez mais sensacionalistas, que reproduziam enfaticamente o que diziam as “autoridades”.

3 – Qual a justificativa das autoridades da época para implementação de uma política como esta?

A medida foi adotada pela polícia e passou a “justificar” as mortes, publicamente. Na prática, uma milícia “oficializada” com autorização para matar (e, na época, existiam milícias – como todas, ilegais e oficialmente clandestinas – voltadas para agir contra ativistas políticos: MAC, CCC etc). Mas, não existia como lei, era uma espécie de “orientação interna” para a polícia. Não existe auto de resistência no Código penal Brasileiro. Até hoje, quando é tipificado como “auto de resistência” não é registrado o homicídio e como o grau de fiscalização inexiste, acaba prevalecendo a versão da polícia.

Acresce-se a isto que no Estado brasileiro não existe o que chamam de “metas de redução da letalidade policial” nem se investiga todos os casos de mortes em ações policiais. Implica, portanto, uma política de impunidade e de “aceitação” de mortes de inocentes, de chacinas, ocultando uma política de crime (extermínio) de Estado.

Resistência, no Código Penal, artigo 329, é: “opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio.
Pena prevista – detenção, de dois meses a dois anos.
§ 1º Se o ato, em razão da resistência, não se executa.
Pena prevista – reclusão, de um a três anos.
§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondências à violência.

Consta ainda que “é essencial para configuração do crime que o agente use violência física ou ameaça” e, ainda, que “o guardião da lei, não excedendo o limite do indispensável, esteja praticando o fato em estrito cumprimento do dever legal, que constitui excludente de ilicitude requerida em lei.

4 – Há décadas, quando estudamos os locais em que ocorrem esses casos de auto de resistência, vimos que esta é uma prática feita dentro das favelas e periferias, por que você acha que esses casos aparecem mais nestes locais empobrecidos?

A criminalização da pobreza, a desigualdade social e a obstrução do princípio da legalidade apontam que 70% dos laudos elaborados por peritos forenses do Rio de Janeiro, em autos de resistência, apresentam tiros na nuca e disparos a curta distância.

Fica até irônico perguntar se existiria por trás desses registros a prática das execuções sumárias. Acrescente-se a isso que é insofismável, hoje, que atingem diretamente os jovens pretos e pobres das favelas, conglomerados urbanos montados a partir da privação de rede sanitária, saúde e moradia.

Tal realidade, mais que nunca, consolida a criminalização da pobreza como política de Estado, o que se agrava com o caso dos mandados de busca “genéricos ou coletivos”, que não especificam endereços ou pessoas e abrange todo um conglomerado urbano.

5 – Você considera o auto de resistência como uma ‘licença para matar’ pobre, negros e moradores de favelas? Por que isto ocorre dentro das favelas e periferias? Como podemos reverter um quadro como este?

Durante o regime dos ditadores, se implantou o medo e a violência como políticas de Estado. O discurso da “Segurança Nacional”, agora “pública” ou “individual”, desde o estreito ponto de vista militar, é sempre voltado para a “ameaça comunista”, a “subversão”, o “terrorismo”, de modo a “justificar” o uso da força, a ameaça e a violência do Estado. Ou seja: que o Estado tenha controle sobre os corpos empobrecidos (proibição do aborto, escolha sexual LGBTis etc). Ao longo dos últimos 30 anos, verifica-se ter havido mera transposição dessa ideologia do Estado de “Exceção” para o “Penal” e um forte processo de criminalização e encarceramento dos setores que – “exército de reserva” sob desemprego planejado e permanente – sobram na sociedade do mercado, excluídos do consumo e marginalizados em prol do lucro, da “regulação” salarial (sub-assalariamento) e seus efeitos, a insegurança social.

O comando da violência, produtora da degradação social e do medo, é deslocado para a esfera da especulação financeira, que destrói e reduz o setor produtivo da economia. Assim, o modelo (neoliberal) em curso rompe com o poder dos sindicatos e estabelece o controle do dinheiro, o rentismo. O que se vê, hoje, na Câmara, no Senado, no Executivo, e também no Judiciário, grita aos olhos: o país em crise e se aprova (quando não é por decreto) isenção e reduções de impostos para os ricos, e restauração de taxas, perdas de direitos e emprego para os assalariados, especialmente os mais pobres. A desigualdade social ativada como “alavanca” da economia. A indústria que interessa produz armas, “hotelaria carcerária”, o Estado contrata mais polícia, agentes carcerários, alcaguetes, delatores premiados etc. Noutras palavras: privilegia-se a escória permanente da crise.

Aqui, a pobreza não é mais exército de reserva de mão de obra, torna-se uma pobreza sem destino, “precisando” ser isolada, neutralizada, destituída de poder. Em paralelo, o Sistema Penal revela sua faceta complexa: a quase totalidade dos presos é de excluídos econômica, cultural e socialmente, mas também de perseguidos políticos, vez que se estreitam os canais de liberdade, manifestação e expressão e extravasa a corrupção, refletindo a sociedade que os produz. Espelho dessas contradições é a privatização, que toma do Estado seus “investimentos essenciais” e o patrimônio público – o fim da soberania e do bem estar social. Tudo é devastado pela privatização: a água, o petróleo, a estação espacial, as florestas, os serviços – transporte, esgotos, telefonia etc – são privatizados. Roldão que leva também o sistema penitenciário, posto a serviço do lucro pelo Estado esvaziado e fraco.

Aprofundam-se a exclusão social e as diferenças de classes, consolidam-se os privilégios. A violência e a mortandade crescem. A iniciativa do Estado penal-policial-e-militar é o uso planejado e o financiamento da violência. Daí se vê que não há policial “mal treinado”: a capacitação do policial se retro-alimenta com mais violência e militarização. Policiais invadem escolas, o Estado desmonta a Educação, as regras e normas do Trabalho, voltam a encher-se as prisões, não se classificam os presos, conforme determina a lei – invertem-se as prioridades do Estado, desumaniza-se a vida, os valores e os direitos humanos. A violência e o medo são vistos como “tolerância zero” e medida para “contribuir com a segurança”. A unidade penal e a sociedade, tratadas igual, salvo os privilégios. O resultado é o que se vê: os presídios viram “campos de concentração” – excessos de presos e, em vários estados, já entregues para o lucro privado – e, do outro lado, o caos político e administrativo naturalizado como “a crise”. E, na crise, só resta resistir, organizar e lutar até vencer.

Entrevista feita por Gizele Martins – jornalista do SINTIFRJ

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