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Educação decolonial

Humberto Salustriano da Silva, de 39 anos, é professor de história da rede pública de ensino; Mestre em Planejamento Urbano pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR – UFRJ); Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; Educador Popular do Pré-Vestibular Comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), além de pesquisador na área sobre Trajetórias Escolares, Segregação Urbana e Pedagogias Decoloniais, e é este o tema da entrevista abaixo. Não deixe de conferir:

1 – Como você descreve o histórico do ensino público tradicional brasileiro? Ele é construído à partir da lógica colonial? Qual o interesse em oferecer este tipo de ensino ainda hoje?

A história da educação pública no Brasil está profundamente marcada pela ideia do privilégio. Seja no período colonial, monárquico ou republicano, o fio condutor dos processos educacionais teve e tem como característica principal garantir um acesso restrito aos mecanismos do exercício do poder, mantendo ao mesmo tempo, a maioria esmagadora da população pobre (em sua maioria negra e não branca) fora dos espaços de decisão política, garantindo assim a perpetuação de uma lógica colonial de dominação. A constituição histórica desse modelo de educação excludente está ligada a própria ideia de centralidade europeia fruto do colonialismo que nos acometeu durante quase quatro séculos.

O ensino nas escolas públicas no Brasil está alicerçado, portanto, na concepção de que a nossa própria nacionalidade foi forjada como um apêndice da história europeia e que todo o protagonismo dos processos históricos de formação do país esteve nas mãos dos brancos europeus. Tal base educacional, obviamente, excluiu a população negra e indígena de qualquer possibilidade de se assumirem como sujeitos da própria história, tendo sido a sua importância relegada a um segundo plano, na maioria das vezes, no papel de povos subalternizados ou sem qualquer autonomia.

O interesse dos poderosos em manter a estrutura da educação no Brasil, ainda neste modelo, passa justamente pelo esforço de manter intactos os velhos mecanismos de exercício de poder e dominação. Afinal de contas, uma escola pública que oferecesse em seu currículo, um olhar sobre a cultura popular marcado pelo protagonismo e pelo estímulo ao pensamento crítico dos povos historicamente marginalizados, seria uma afronta direta aos modelos de dominação colonial, e por conseguinte uma ameaça real àqueles que desde muito tempo monopolizam os espaços de poder no país e ditam as regras sociais introjetadas pela sociedade.

2 – Por que o histórico da população indígena, negra, não está ainda nos livros didáticos, no currículo escolar das instituições públicas e como devemos lutar para exigir a nossa história nas salas de aula?

A história da população negra e indígena está excluída, ainda em grande parte, nos livros didáticos, justamente porque os modelos eurocêntricos de educação ainda são majoritários não apenas nas escolas, mas em todas as instituições de uma maneira geral, no Brasil. O negro ou indígena não está, por exemplo, nos espaços de poder das comunicações midiáticas. Eles não estão nos espaços educacionais privilegiados das Universidade Públicas. Eles não estão também nos principais órgãos dos serviços públicos. Tudo isso, porque a educação historicamente colonial, tem um efeito direto e perverso na própria constituição das desigualdades sociais e raciais no país. A crença na subalternidade dos povos marginalizados continua a ser construída sob o manto de uma supremacia branca que, em última instância, está balizada na velha ideia europeizada de conhecimento, e que vai para os livros escolares com a finalidade de legitimar e constituir a colonialidade do pensamento da população pobre.

3 – Existe hoje um pacote de desmonte de educação pública, desde o fechamento de escolas; professores sem receber; falta de recursos; Projeto Escola sem Partido; dentre diversos outros retrocessos. Por que isto ocorre num momento como este e quais as saídas, como professores, alunos e toda a sociedade pode apoiar esta luta por uma educação pública e para todos e todas?

Como bem disse Darcy Ribeiro, “A crise da educação no Brasil não é uma crise. É um projeto”. Hoje, mais do que nunca, Darcy tem razão. Eu vejo o atual momento de desmonte da educação pública como uma reação avassaladora das classes políticas conservadoras ao mínimo de direitos que havíamos conquistado nessas duas últimas décadas. E fazer essa afirmação, não tem nada a ver com uma defesa idiotizada da Era Lula/Dilma, como se todas a questões problemáticas desses governos fossem, como um passe de mágica, deixadas de lado. Até porque, quando penso em conquista de direitos mínimos que havia se concretizado nesses últimos anos, não entendo como benevolência de governos ou caridades de políticos engravatados que de uma hora pra outra teriam se compadecido do mais pobres. Obviamente, que não se trata disso. Quando penso em direitos, penso em luta dos movimento sociais. Penso em lutas históricas dos movimentos negros que culminaram nas políticas afirmativas de acesso à Universidade Pública. Penso na Lei 10.639 que tornou obrigatório o ensino da história da África nas escolas brasileiras. Penso na luta de tantos e tantos movimentos pela demarcação de terras para os indígenas e quilombolas. Penso no avanço gradativo da luta das mulheres pela igualdade de direitos. Penso em tantos e tantos movimentos. Nenhuma dessas vitórias foi dada de mão beijada. Exigiu sangue, suor e luta.

Então, eu avalio que no atual momento, aquilo que existe de mais podre no cenário da conjuntura nacional, assumiu por completo o comando de todas as instituições do país e vem atacando de maneira perversa e orquestrada as nossas pequenas, mas importantes vitórias, e vem construindo outros modelos de funcionamento da educação pública que nada mais é do que a velha estrutura colonial. Quando a gente assiste atualmente um projeto como o ‘Escola Sem Partido’ ganhar espaço no cenário nacional, significa que a vitória do obscurantismo tem se tornado cada vez mais uma realidade concreta. Significa que o silenciamento dos educadores populares, sob pena e ameaça de prisão não se mostra uma possibilidade tão distante e irreal assim.

Quando a gente assiste a aprovação de uma reforma do ensino médio empurrada goela abaixo sem qualquer possibilidade de diálogo, significa que as velhas elites escravocratas tem mostrado as suas garras e mandado uma mensagem muito clara aos jovens pobres deste país: “não aceitaremos pacificamente a entrada de vocês em espaços educacionais que foram sempre nossos”.

A reforma do ensino médio nada mais é, portanto, do que um mecanismo cruel para manter os filhos dos trabalhadores nas funções técnicas e mal pagas no mundo do trabalho, e deixar para os filhos das classe médias e altas, o domínio da tecnologia e da produção do conhecimento. Somam-se a isso, o desmonte do quadro dos servidores da educação com salários atrasados e desvalorizados, assim como a falta de investimentos na própria estrutura física das escolas e teremos um único e terrível resultado: a manutenção das velhas desigualdade educacionais.

A saída para este caos político que deve envolver todos os que são diretamente atingidos por ele passa pela única ação concreta possível: a luta social. Disputar os espaços onde as forças conservadoras apresentam as suas armas. Dialogar com a população atingida diretamente pelo autoritarismo dos governantes. Construir um trabalho de base que verdadeiramente privilegie o protagonismo dos povos subalternizados pelo colonialismo. Praticar a educação popular nos espaços formais e não formais de educação, construindo um currículo decolonial que ofereça ao povo, as ferramentas necessárias para a prática de um pensamento autônomo. Infelizmente, os resultados de ações como essas não vem na velocidade que gostaríamos que viesse. Mas é primordial que façamos acontecer.

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