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Governo pela Humilhação. Ou, o rodo cotidiano!

A estrutura atual do capitalismo produz um tipo de ação sobre os trabalhadores – sobre todos os indivíduos – que funciona como um gigantesco mecanismo de assédio, de exploração e de humilhação dos cidadãos até o ponto de produzir um ambiente degradado nas relações de trabalho, nas relações sociais em geral e na subjetividade.
A ideia é que a violência institucionalizada sobre os indivíduos hoje em dia alcança níveis tão altos e generalizados, e ao mesmo tempo tão cotidianos, que já não a percebemos mais como tal, e a incorporamos como um dado da realidade.

Quero usar de apoio para a reflexão o filme “Eu, Daniel Blake” (2016) do diretor inglês Ken Loach[iv]. A obra trata da vida de um trabalhador, nos dias de hoje, na busca por seus direitos. Depois de uma angustiante via-crucis, em que os funcionários agem como se inimigos dos cidadãos fossem, em intermináveis ligações para call-centers e em inúteis consultas “ao sistema” na internet – por parte de um indivíduo que não domina seu uso (um cotidiano muito próximo ao do Brasil, portanto) -, o protagonista lança contra a funcionária que tratava do seguro-desemprego, a conclusão: um homem doente procurando por empregos inexistentes; vocês sabem que não há emprego e me obrigam a voltar aqui. Tudo isso é feito só para me humilhar.

Aí está a ideia decisiva: governar pela humilhação. Um sistema montado para oprimir os cidadãos, que busca jogar sobre suas costas toda a responsabilidade (e o sentimento de culpa) pela situação em que se encontram – mais: que se sintam merecedores de todo tipo de condição degradante. Daí a comparação com os casos de assédio no trabalho, em que também se mostra como uma forma de “gestão” das pessoas. Uma gestão que na maior parte dos casos não é apresentada como obra de um chefe, mas sim, a submissão a um “sistema” onde não há aparentemente uma decisão pessoal, e assim amplia as formas de manter um clima de dúvida e uma sensação de dívida por parte dos funcionários que competem a todo tempo entre si.

Para a compreensão mais completa deste quadro, é necessário introduzir uma personagem que raramente aparece nas análises dos “especialistas” e no senso comum. Este escamoteamento do capital é estratégico, justamente para que não entre no campo de percepção das pessoas a forma pela qual as empresas privadas, os bancos, os acionistas da bolsa de valores agem por fora e por dentro do Estado disputando o controle dos recursos financeiros disponíveis com os cidadãos. Tornando assim, o Estado, os políticos os únicos agentes visíveis contra os cidadãos.

No Estado de Bem Estar Social, os recursos públicos são pesadamente investidos em educação, saúde, previdência e seguridade social, transporte, moradia, enfim, um conjunto de ações feitas pelo Estado de modo a garantir uma qualidade digna de vida a todos os cidadãos. São os direitos sociais ou direitos econômicos. Este enorme investimento social é contrário aos interesses do capital: primeiro porque toma grandes quantidades de recursos que poderiam ser desviados para o bolso das grandes empresas e bancos, sob forma de juros e empréstimos; segundo, porque limita o campo de atuação do capital (com escolas e hospitais públicos de qualidade, não haveria necessidade de escolas e hospitais privados, certo?).

Já faz muito tempo ouvimos falar de capitalismo flexível ou das “novas exigências do mercado de trabalho”[v]. Até os anos 1980 era possível pensar em um trabalhador que tivesse uma carreira, que raramente ou nunca trocasse de emprego, e que, o mais importante, seu futuro fosse bastante previsível.

A degradação do trabalho faz parte desse movimento de governar pela humilhação, de retirar a estima e corromper o caráter das pessoas de modo a esfacelar o auto-respeito dos cidadãos e cidadãs. Agora, pensemos isso a partir de uma experiência bastante concreta a “muitos” dos trabalhadores que é a mudança da ideia de carreira para a ideia de emprego e, mais recentemente, de projeto ou empreendimento com a reforma trabalhista e a lei de terceirização.

Com essas reformas, os trabalhadores são lançados num mar turbulento de incertezas e inseguranças, como numa luta pela sobrevivência diária, sem qualquer garantia a médio e a longo prazo para o planejamento e segurança sua e de sua família. Na outra ponta desse sistema, verifica-se o aumento da concentração de renda em escala mundial, com aumento dos lucros das empresas e bancos, e o aumento das grandes fortunas[vi].

Os efeitos subjetivos são uma sensação generalizada de esgotamento, de um cansaço cada vez mais solitário, de impotência diante das instituições e do mercado. Acabamos engolidos pela ideologia do neoliberalismo, que penetra desde o nascimento dos nossos corpos e nossas mentes e se transforma em uma paisagem natural, no ar que respiramos. Essa ideologia do neoliberalismo quer transformar cada cidadão em consumidor, cada trabalhador em empresa (daí a insistência nessa ideia de empreendedorismo), esvaziando qualquer resquício de coletividade, de fraternidade entre as pessoas. O governo pela humilhação é o “rodo cotidiano”[vii].

Notas e referências:
[i] Esgotamento proveniente do trabalho. Pelo estresse, auto-exigência e ultra-cobrança que é interiorizada pelo trabalhador como uma tentativa de “realização profissional”, e que não mais reconhece a exploração a que está submetido como algo externo, mas como uma ordem, um mandato vindo de dentro de nós, como necessidade de sempre superação.
[ii] Entrevista no jornal El Pais Brasil. Ver em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/07/cultura/1517989873_086219.html
[iii] No Brasil, publicado pela Editora Vozes.
[iv] Disponível no Netflix e outras plataformas.
[v] Atenção: a própria ideia de que também o trabalho está sujeito ao mercado é já uma subversão feita pelo capitalismo, uma vez que coloca a vida dos indivíduos – suas aspirações, formação, conhecimento, projeções… – à mercê da lógica do mercado como um produto mais.
[vi] Ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/13/internacional/1513193348_895757.html ; e Thomas Piketty, O capital no século XXI. Editora. Autêntica.
[vii] Título de uma música da banda O Rappa, cuja letra sugerimos a leitura.

Artigo de Affonso Celso Thomaz Pereira

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